quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Contar, sinônimo de compartilhar


“(...) Sérgio olhou bem fundo nos olhos do monstro e disse: ‘Se você ficar me olhando assim eu vou chamar um monstro muito mais feio pra te assustar!’ E então apareceu um monstro com um olho só, duas bocas, três chifres e quatro trombas (...)” *.
E o quarto do hospital caiu na gargalhada.

Ah, quem dera pudéssemos chamar monstros mais feios – e porque não, engraçados – para o lugar daqueles que assombram o nosso imaginário ou dos que fazem parte da realidade do dia-a-dia. O máximo que eu, como uma simples mortal, posso fazer é fazer rir. Ou espantar. Ou alegrar. E assim é a minha rotina como contadora de histórias voluntária no Instituto de Infectologia Emílio Ribas.

Todas as segundas-feiras, bem cedinho, pego minha sacola mágica de livros (sai cada coisa de lá), meu avental de superpoderes do mundo do faz-de-conta e minhas idéias, construídas em uma infância regrada a livros, causos (nada como ter oito tios vindos de uma família nordestina) e muita brincadeira. Tudo isso somado a uma vida adulta que nunca se esquece – por mais difícil que seja, de que toda a essência da vida está na pureza da infância, na crença do lúdico, das fadas, das bruxas e até mesmo dos monstros.

Sempre que me perguntam como é contar histórias, digo que é fantástico, maravilhoso. E então vêm as perguntas seguintes: “Mas no hospital? E para crianças? Não é triste demais?”. O que eu respondo? Ué, é igual! Criança é criança em qualquer lugar. Logo, quando chego nas manhãs de segunda-feira para contar histórias no Emílio Ribas, me comporto como se eu estivesse indo contar histórias na creche perto de casa. São apenas crianças! Doentes, sim, mas crianças. E como qualquer uma delas, o que mais querem é brincar, conversar, contar e ouvir histórias.

Ah, como elas amam ouvir histórias! Olha, nem a TV ganha de nós, contadores. E nesse mundo da imagem é um concorrente difícil, convenhamos. Basta verem nosso avental colorido para falarem: “Lá vem os tios da história, ehhhhh”. Ok, ok, como toda unanimidade é burra, nem sempre eles nos querem por perto, mas só pelo fato deles poderem dizer “não”, eu já fico feliz, afinal eles não podem dizer não para a injeção que dói ou para o remédio amargo. Mas para nós sim. E geralmente o não de hoje significa um sorriso aberto e uma ótima história de amanhã.

Contar histórias, seja onde for, significa compartilhar com o outro um pouco de nós, e vice-versa. Significa laço, relação, coisa tão em falta nos tempos atuais. Significa o contato e a experimentação de emoções. Significa doação. Significa crer.

Contar histórias significa acreditar que o bem pode vencer o mal, e que sim, ainda poderemos ter um final feliz. Ou pelo menos, uma boa história para contar.

E seguimos compartilhando...

Lili

* Baseado no livro O Domador de Monstros, de Ana Maria Machado.

Escrevi esse texto exatamente às 17h59, do dia 8 de fevereiro de 2007. Foi o primeiro ensaio de ter um blog, de começar a compartilhar as minhas histórias e as muitas histórias que venho aprendendo (e vivendo) ao longo de quase 5 anos como contadora de histórias. Cá estou, e para começar, o trecho de uma música que reflete bem esse momento:


Wave
Tom Jobim

Vou te contar
Os olhos já não podem ver
Coisas que só o coração pode entender
Fundamental é mesmo o amor
É impossível ser feliz sozinho...

O resto é mar
É tudo que não sei contar
São coisas lindas que eu tenho pra te dar
Vem de mansinho à brisa e me diz
É impossível ser feliz sozinho...